“História da Velha Arte Dentária”
Resumo da palestra que António Vasconcelos Tavares proferiu no dia 21-02-2020, no âmbito do ciclo de conferências organizadas pelo NHMOM:
As minhas primeiras palavras são para agradecer o honroso convite que me foi dirigido pelo Colega, Dr. Aires Gonçalves, para vos falar da história da Estomatologia.
O Homem e o dente são contemporâneos, dado que o Senhor os formou de um só sopro depois de ter criado a luz e de ter extinto a escuridão sem idade do mundo.
Com o primeiro pecado, só praticável porque tinham dentes, a bíblica dentada de Adão e Eva na maçã, veio o castigo eterno e o sofrimento. “Serão assim a cárie e a dor que merecerão, na longa história da arte dentária, empenhadas atenções dos que tem por dever aliviar os padecimentos humanos”, afirmou o Prof. Doutor Luís de Pina na abertura do II Congresso Nacional de Estomatologia em 1964.
De facto a dor e a cárie existem desde a mais remota antiguidade.
Embora no homem de Neanderthal e de Cromagnón não se registassem cáries, estes tinham condições para sofrer de patologia dolorosa, pois apresentavam grande desgaste das superfícies mastigatórias, um terço maiores do que as actuais, provavelmente devido ao tipo de alimentação à base de vegetais duros, raízes e carne, a par de maxilares muito desenvolvidos e dotados de fortes músculos.
Os primeiros documentos sobre a arte de curar as doenças da boca surgem com o nascer das civilizações.
Nas margens do Nilo os egípcios desenvolveram graças à coesão das suas estruturas políticas e sociais, à influência da religião e ao vigoroso alento espiritual, a mais prolongada (cerca de 4000 anos) e homogénea civilização conhecida na história desde Menes, fundador da Primeira Dinastia, a Cleópatra. O mais antigo dos médicos especialistas de que há registo, foi Hesi-Ré, Chefe dos Dentistas e Médicos do palácio real egípcio, no reinado do faraó Djoser, cerca de três mil anos A.C., segundo se pode depreender de uma inscrição encontrada na pirâmide em degraus ou Saqqara, seu túmulo.
Nos antigos papiros egípcios, encontrados por Edwing Smith e Ebers, estão descritos alguns tratamentos quer para combater as dores de dentes, (consistiam na colocação de uma pasta de incenso, cominhos e cebola em partes iguais, aplicada na cavidade do dente), quer para abcessos, (aconselhavam a sua drenagem) e fracturas dos maxilares (em que ensinavam a redução e imobilização).
Na biblioteca do Rei Assurbanipal, na Babilónia, e datando do segundo milénio A.C. encontram-se placas de argila, gravadas com escrita cuneiforme contendo orações para expulsar o verme, corporificação do demónio mau, que corroía e destruía o dente.
Também Heródoto no séc. V A.C. descreve a existência de profissionais de saúde, alguns dos quais seriam unicamente dentistas.
Na Grécia e segundo Cícero, foi Esculápio o inventor do temível boticão ou fórceps dentário. Na época era designado por odontogagum e feito em chumbo para poder dobrar-se em caso de extracções difíceis, evitando as fracturas do maxilar.
A medicina hipocrática preconizava a utilização do cautério, para afastar a pituíta, humor responsável pelas dores ao acumular-se em torno das raízes do dente. Considerava a extracção um remédio heróico só devendo ser utilizado quando todos os outros tinham fracassado. As terapêuticas mais comuns resumiam-se a cauterizações gengivais, gargarejos, bochechos e extracções.
Na Roma imperial, a higiene oral era muito importante, usando-se plantas como o nardo, a verbena, o meimendro e a mirra para perfumar o hálito. A boca era considerada o vestíbulo da alma e um instrumento utilíssimo para a humanidade, estojo da língua, insubstituível jóia que adicionada ao divino dom da palavra, colocava o homem muito acima dos outros mortais. É ainda na Roma antiga que surge a primeira anestesia local, com o uso da “Pedra de Memphis”, carbonato de cálcio, que molhada em vinagre e aplicada em fricções sucessivas libertava ácido carbónico, responsável pelo efeito antiálgico.
É aceite, pelos historiadores e investigadores, que a primeira escola de Medicina em Portugal, surgiu em Coimbra no Mosteiro de Sta. Cruz, ainda no tempo de D. Afonso Henriques o que não se estranhará visto a Medicina de então ser exercida por frades que consideravam o seu exercício uma obra de misericórdia. Terá sido nesta escola que, muito provavelmente, Pedro Julião ou Pietrus Hispanus, fez a sua formação básica de 1240 a 1246. Único Papa português, sob o nome de João XXI, foi médico e pela sua ciência mereceu o nome de Dr. Universal. Entre as várias obras de medicina e teologia que escreveu vale a pena relembrar o “Thesaurus pauperum”, notável compilação de receitas médicas conhecidas, no seu tempo, com um carácter eminentemente prático. Obra esta que teve grande expansão na Idade Média e foi repetidamente editada a partir dos primeiros alvores da imprensa. Conhecem-se 81 edições em várias línguas do séc. XV ao séc. XVIII. A edição em espanhol recomenda que para alívio da dor de dentes se faça oração a Sta. Apolónia e a dor desaparecerá.
Dos milhares de mártires caídos nos três primeiros séculos da Igreja, apenas um pequeno número ficou nas páginas da história. Entre estes está Sta. Apolónia.
Dela fala S. Dionísio numa carta escrita a Fábio, bispo de Antioquia, aí sendo relatada a história de Sta. Apolónia. S. Dionísio foi bispo de Alexandria, cidade onde Sta. Apolónia foi martirizada e ainda seu contemporâneo, pelo que o seu depoimento tem importante valor histórico.
Apolónia era filha de um influente magistrado de Alexandria. De família nobre, fazendo parte do grupo das diaconisas, cuidadosamente escolhidas entre as cristãs, viúvas ou solteiras, de cerca de 30 anos de idade.
Escreve S. Dionísio, “entre outros prenderam a admirável virgem, já de idade, Apolónia, a quem partiram à pancada todos os dentes e destroçaram os maxilares. Acenderam por fim uma fogueira e ameaçaram queimá-la viva se não repetisse, em coro com eles, as ímpias blasfémias lançadas a gritos de pregão. Mas ela, pedindo que a deixassem liberta, correu precipitadamente e atirou-se para o fogo, morrendo queimada. As suas últimas palavras dirigiram-se aos que padecem com dores de dentes, quando a invocarem encontrarão alívio para o seu sofrimento”.
A estes dados históricos juntou-se uma tradição que a Idade Média enriqueceu, adicionando a fantasia das suas lendas.
O culto de Sta. Apolónia aparece na Europa quase simultaneamente em vários países, talvez devido à influência do Papa João XXI ou Pedro Hispano e da sua obra antes referida. Como curiosidade refira-se que no local onde hoje existe a Estação Ferroviária de Sta. Apolónia, existiu antes uma capela, de Sta. Apeloinha, com imagem e relicário, depois integrada no convento de Sta. Apolónia em frente à calçada dos Barbadinhos. Segundo o Dr. Paiva Boléo, já em 1337 existia, em Lisboa, devoção a Sta. Apolónia. Por testamento de D. Maria Aboim recebera a capela uma doação de quarenta soldos. Com a construção da estação em 1852 a fachada da igreja foi apeada e reconstruída no lugar do Arrepiado na Chamusca.
A medicina portuguesa passou entretanto além fronteiras e Vasco ou Valesco de Taranta, um dos médicos mais famosos do seu tempo diplomou-se, no séc. XIV, na Universidade de Montpellier, onde posteriormente foi professor e onde, ainda hoje, se pode encontrar o seu retrato. Foi médico de Carlos VI, rei de França e na sua obra “Philonium” trata detalhadamente da etiologia, sintomatologia, prognóstico, profilaxia e tratamento de várias afecções dentárias.
Amato Lusitano foi outro notável médico português do séc. XVI que exerceu medicina em Antuérpia, Ferrara e Roma, onde tratou o Papa Júlio III. Uma das observações interessantes sobre Amato Lusitano refere-se ao tratamento de uma perfuração palatina, de origem sifilítica, cuja oclusão consegue com uma placa de ouro.
Entre as doenças que se tornaram mais frequentes entre nós, no tempo dos descobrimentos, há a referir o escorbuto, a que Camões se refere nos Lusíadas quando diz:
“Quem haverá que sem o ver o crea?
Que tão disformemente alli lhe incharão
As gengivas na boca, que crecia
E a carne juntamente apodrecia”
É natural que a medicina se preocupasse com este problema, que marcou uma época, provocado pela carência em vitamina C, devido à falta de legumes e frutas frescas nas viagens marítimas. Este problema hoje de fácil solução arrastou-se por cerca de dois séculos. Garcia da Horta na sua obra designada “Colóquios”, refere várias drogas indígenas que vieram enriquecer o arsenal terapêutico europeu na luta contra o escorbuto.
A regulamentação do exercício da profissão médica inicia-se por carta régia, de el-rei D. Afonso V, segundo a qual quem usasse da física ou da cirurgia sem licença especial, passada pelo Cirurgião-Mor do Reino, era preso ou multado.
Apesar de todas as medidas legais grassava o curandeirismo. Em relação à arte dentária quem nesse tempo tirava dentes eram alguns cirurgiões, vários barbeiros e cirurgiões estrangeiros ambulantes como Mestre Pedro, por alcunha o “sacamuelas”, nascido em França por volta de 1526 e que exercia a arte em Lisboa em 1561, intitulando-se cirurgião-dentista.
Uma nova carta régia datada de 1629 insiste na necessidade de os Cirurgiões-Mores visitarem os domínios reais e examinarem os ofícios de cirurgião e barbeiro, com a finalidade de verificar se dispunham de licença para a sua actividade. As cartas de cirurgião barbeiro autorizavam a sangrar, pôr ventosas, sarjar, pôr cáusticos, fazer pequenas intervenções cirúrgicas e tirar dentes.
Segundo Silva Carvalho, Zacuto Lusitano, clínico notável, que depois de ter exercido em Portugal, durante 30 anos, retirou-se para Amsterdão com receio da Inquisição. Foi o primeiro dos nossos autores a fazer uma descrição anatómica completa da língua, dos dentes e das estruturas adjacentes, ocupando-se ainda da dor e da hemorragia pós-extracção.
Maria I, durante um período de profundas transformações políticas culturais e sociais, extingue os cargos de Cirurgião-Mor e Físico-Mor, atribuindo as suas funções à Real Junta do Proto-Medicato que, segundo uma lei de 1782, era constituída por sete médicos e cirurgiões. Os candidatos a arrancadores de dentes teriam que requerer a respectiva licença à Real Junta.
É Feliciano de Almeida que na sua obra “Cirurgia Reformada”, publicada em 1738, emprega pela primeira vez o termo odontalgia, para designar a dor de dentes. A sua obra inclui capítulos sobre a rânula, edema dos lábios, epúlide e escorbuto.
Um nome habitualmente citado nesta época é o Dr. Francisco da Fonseca Henriques o Dr. Mirandela que publica uma obra notável “Medicina Lusitana. Socorro Delphico”, onde desenvolve o tema da patologia oral e dentária.
Com a supressão da Real Junta do Proto-Medicato, em 1800 e nomeação de novo Cirurgião-Mor, pelo Príncipe Regente, é estabelecido um programa para a admissão a exames de habilitação a dentista. Os exames podiam ser feitos na Universidade de Coimbra ou nas Escolas Médico-Cirurgicas de Lisboa e Porto. As matérias incluíam anatomia, patologia, medicina operatória (conservação e extracção de dentes) e prótese dentária. No início do séc. XIX havia, em Lisboa, uma centena de dentistas portugueses e vários estrangeiros.
As tabuletas e anúncios traduziam, quase sempre, a sua incultura e, por vezes, descarada charlatanice.
A necessidade de uma preparação correcta apoiada em conceitos científicos válidos é cada vez mais premente em todo o mundo, onde o panorama é semelhante ao descrito para Portugal.
Por influência do Presidente George Washington, desdentado aos quarenta e sete anos e portador durante a vida de 44 próteses dentárias, é criada em 1840 em Baltimore, no Maryland, pelo seu dentista John Greenwood e colaboradores, Hayden e Harris, a primeira Escola de Medicina Dentária do Mundo. Não será certamente desajustado concluir que o Presidente, toda a vida sofredor de problemas dentários e que tinha o cuidado de colocar sob os lábios rolos de algodão, quando se fazia retratar, para compensar a falta de relevo ósseo, verificou por si próprio, a urgente necessidade da criação de um ensino organizado de qualidade.
Em França, Inglaterra, Suíça outras Escolas Dentárias abrem, entretanto, as suas portas.
O advento da Implantação da República em Portugal com o seu vasto programa de reformas e de esperanças, como diz Simões Baião, fez acalentar, entre nós, a esperança de um ensino organizado à semelhança do que já ia acontecendo por toda a Europa.
Em Janeiro de 1911, pouco tempo após a implantação da República, um decreto suspende os exames de dentista, por “insuficientes, desajustados e incompatíveis com as actuais exigências da ciência dentária”, entregando o exercício da arte dentária exclusivamente a médicos. A 22 de Fevereiro do mesmo ano é criada, por decreto, a Cadeira de Estomatologia nas Faculdades de Medicina, então sujeitas a reforma curricular, disciplina infelizmente extinta em 1926, sem nunca ter funcionado, como refere o Prof. Dr. Nunes da Silva no seu artigo sobre a evolução da arte dentária e seu ensino em Portugal.
A Sociedade Portuguesa de Estomatologia foi a primeira especialidade médica a organizar-se em Sociedade Científica e é constituída em 1919. Foi ainda das primeiras agremiações mundiais a filiar-se na Associação Estomatológica Internacional, a mais prestigiada sociedade internacional da época.
Manteve inalterável, ao longo dos anos, o espírito que presidiu à feitura dos seus estatutos, orientando e promovendo a formação científica, deontológica e ética dos colegas, através de Palestras, Cursos e Congressos de alta qualidade e pugnando durante décadas, junto das autoridades competentes, pela criação de um ensino organizado.
Eram cerca de uma trintena os médicos que se dedicavam a esta especialidade, como pioneiros muito lutaram pela dignificação da Estomatologia e pela oficialização do seu ensino nos cursos de Medicina. A introdução de um curriculum específico que valorizasse os cuidados de saúde da cavidade oral, parecia fundamental.
Procurava-se ainda activamente o lançamento do Instituto de Estomatologia, muito semelhante ao existente em Paris, no Hospital Salpetriére, mas que, infelizmente, nunca passou da fase do decreto criador. Os nossos colegas desta época, Amor de Melo, Ferreira da Costa, Tiago Marques, Paiva Boléo, entre outros – eram poucos, mas de grande dinamismo – deram um impulso, de vital importância, para o desenvolvimento da Arte Dentária e da Sociedade de Estomatologia. Foi através do motor da Sociedade que se atingiu um bom nível de aperfeiçoamento da arte dentária em Portugal, até ao aparecimento das Faculdades de Medicina Dentária de Lisboa e Porto.
Depois de meio século de frustrantes tentativas para criar um Ensino organizado, e quase século e meio após a primeira Escola Dentária de Baltimore, toma posse a 3 de Julho de 1975 a Comissão Instaladora da Escola Superior de Medicina Dentária de Lisboa. A Escola inicia o seu funcionamento a 14 de Outubro de 1977, com treze docentes fundadores e 16 alunos.
Em 15 de Maio de 1976, com percurso semelhante e com o esforço e a dedicação de muitos colegas é criada a Escola Superior de Medicina Dentária do Porto que recebe os primeiros alunos ainda no ano lectivo 1976/77.
Em Coimbra, alguns anos mais tarde, é criada a licenciatura em Medicina Dentária na Faculdade de Medicina de Coimbra.
Posteriormente e até ao momento actual surgiram mais quatro instituições privadas com licenciaturas em Medicina Dentária.
Hoje podemos orgulhar-nos de possuir, em Portugal, um ensino considerado exemplar para vários países comunitários.
A dignificação de uma instituição universitária baseia-se na sua capacidade intelectual, ou seja, no progresso de uma inteligência colectiva de docentes e discentes interessados em transmitir e em receber os saberes adquiridos e os conhecimentos novos num ensino permanente, indivisível e continuado.
Temos pugnado por cumprir as missões essenciais do ensino superior tal como definidas na Conferência mundial da UNESCO sobre o ensino superior e definidas como acções para o século XXI. Educar, formar, investigar e em particular contribuir para o desenvolvimento duradouro da sociedade, no seu conjunto.
Continuaremos a nossa marcha, aprofundando e enriquecendo as linhas estratégicas de orientação que encetámos. Promover realmente a qualidade, por um esforço efectivo de transformação positiva dos nossos desempenhos e resultados, do serviço que prestamos e daqueles que formamos. Desenvolvemos e desenvolveremos a nossa acção num escopo de contribuir para a consolidação, fortalecimento e acrescida dignificação de um sistema universitário público – verdadeiramente à altura das exigências, responsabilidades e intervenção que as comunidades onde nos inserimos legitimamente esperam.
É impossível disseminar e enraizar uma “sociedade do conhecimento” sem um cultivo valorizado e sério dos saberes em ambiente de dinâmica vitalidade. É estultícia inadmissível que esse cultivo imagine sequer alhear-se do seu entrosamento e função sociais.
O objectivo da nossa profissão é ensinar e educar, mulheres e homens íntegros, imbuídos do sentido do dever e do sacrifício, dotados de sentido do humor e das conveniências, de bom senso, aptos a trabalhar em harmonia com outros e possuidores de um grande amor pelo próximo.
Começámos em 1976 continuaremos na prossecução dos nossos objectivos com esperança, pois ela nos levará à meta, no dizer de Ésquilo.
Com a fundação das Faculdades de Medicina Dentária culminaram cem anos de lutas, vicissitudes e anseios, um século de esperanças e desilusões, em que alguns dos pioneiros se extinguiram, deixando a outras gerações a fé e a força para continuar a caminhada nunca interrompida.